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Como ser queer é fundamentalmente antirreducionista

Aviso de conteúdo: discussão de várias facetas de reducionismo anti-BTQIAPN+, links a postagens com vários tipos de queermisia.

Uma reclamação comum sobre a comunidade queer (ao menos na anglosfera, onde não reduzem o conceito a algumas frases fora de contexto sobre teoria queer) é inclusiva demais. Que, se qualquer pessoa que se disser queer for aceita como queer, pessoas privilegiadas podem adotar queer e assim adotar certo "status" de oprimidas, ou achar que pertencem a comunidades que não pertencem.

Frequentemente, quem diz isso não quer apenas policiar o uso de queer a ponto de quererem que a palavra não seja usada, ou seja apenas usada por pessoas não-hétero, não-cis ou intersexo. São também pessoas que não querem que a palavra possa ser usada para descrever pessoas que saiam de um padrão ideal de pessoa transmasculina, transfeminina e/ou com atração pelo mesmo gênero (isso quando sequer consideram que pessoas trans estejam falando a verdade sobre suas identidades de gênero, ou que pessoas trans não-binárias existem).

Ou seja, há uma ligação entre pessoas que não querem que a palavra queer seja utilizada, ou utilizada com significados mais inclusivos, e reducionismo, ou seja, querer que o mínimo de pessoas possível seja "aceita" como LGBT(QIAPN+), algumas vezes até instituindo uma hierarquia onde pessoas de certas identidades LGBT(QIAPN+) precisem ser mais ouvidas do que outras. {x} {x} {x} {x} {x}

O que essas coisas têm em comum é que há um medo de diversidade, de desconhecimento, de falta de hierarquia.

O medo da diversidade

Se o significado de queer for "abrangente demais", as chances aumentam da pessoa ir num espaço queer e encontrar pessoas que se identificam de outras formas.

Um homem gay cis e perissexo já não vai poder ir mais em um lugar queer e presumir que, fora as pessoas que "parecem mulheres", todas as pessoas ali são compatíveis com sua orientação sexual.

Pessoas binárias de alta passabilidade já não podem ir nesse lugar e presumir que todo mundo usa o/ele/o ou a/ela/a, e que é "só se esforçar" pra poder merecer a linguagem que quer (entre essas duas).

Pessoas não-hétero cis e perissexo já não podem considerar óbvia a corporalidade das outras pessoas no espaço, ou usar "hétero" como sinônimo de quem não participa daquele lugar.

Pessoas que são hétero, lésbicas, gays ou bi já não podem presumir que estas são as únicas orientações existentes. Pode ter gente pan, assexual, arromântica, abro, pomo ou de muitas outras orientações ali no meio.

Ou seja, essas pessoas perdem o controle das narrativas desses espaços. Para ainda serem consideradas progressivas, elas vão ter que sair de sua zona de conforto e aprender sobre outras formas de viver e de se identificar.

O medo do desconhecimento

A inclusão de pessoas de outras identidades também abre as portas para a ideia de que, mesmo achando que "já soubessem tudo", existem pessoas de identidades/vivências diferentes que também merecem ter suas narrativas sendo reconhecidas como queer.

Isso acontece também quando chamam a atenção para intersecções com outros grupos marginalizados, como mulheres, pessoas racializadas e profissionais do sexo.

Porém, acredito que essas pessoas tenham ainda mais medo e raiva quando supostamente estamos falando da comunidade "delas", que supostamente "já conhecem".

Boa parte das comunidades "LGBT" não sabem lidar com seu desconhecimento sobre identidades ou vivências diferentes das suas.

As reações raramente são de querer aprender, ou de vergonha por não saberem de algo importante, e sim reações negativas, de dizer que aquele grupo não pertence ali, ou que aquilo é uma invenção/novidade, ou que é um grupo ridículo que só serve para envergonhar a comunidade de verdade. Piadas de mal gosto para disfarçar o asco pela existência de comunidades que alguém não conhecia também são comuns.

O medo da falta de hierarquia

Comunidades "LGBT" possuem hierarquias bem arbitrárias.

É comum falar de lésbica/gay/bi/trans como as identidades mais importantes, mas elas certamente não são as mais abrangentes. Sáfica e aquileano são termos mais inclusivos que lésbica e gay. Bi é um termo rejeitado por muitas pessoas multi (um termo que foi explicitamente cunhado para ser inclusivo de qualquer pessoa que sente atração por mais de um gênero, sem ser ligado a uma identidade existente).

Trans era pra ser um termo abrangente, mas não é tanto quando no Brasil atual muita gente só usa transexual ou travesti sem se dizer trans ou transgênero. E não sei o quanto isso é comum no Brasil, mas em outras partes do mundo é comum ver pessoas não-binárias se afastando do termo trans (ou mesmo nem sabendo que podiam usá-lo) por conta do exorsexismo de pessoas trans binárias.

Também existem várias histórias de pessoas multi sendo silenciadas ou rejeitadas em espaços que eram supostamente inclusivos delas, e de pessoas a-espectrais L/G/B não podendo ter tanta voz quanto as pessoas alo destas mesmas identidades.

E daí temos a questão da própria sigla sendo usada na maioria dos lugares. "Temos que usar algo reconhecível e resumido", dizem. E daí usam LGBT, ou, talvez depois de pressão, LGBTQ+ ou LGBTI ou similar. A maioria não pensa em usar alguma sigla como NHINCQ+ (que não é só uma lista de identidades específicas), ou algum termo mais inclusivo, mas ainda quer criticar/zoar eternamente quem ousa incluir mais letras na sigla sagrada.

A crítica/resistência à utilização de termos como alossexismo, monossexismo e exorsexismo, úteis para falar de questões específicas de grupos que sofrem mesmo dentro de espaços não-hétero e não-cis, também demonstra o quanto certos grupos são desvalorizados e silenciados por essa hierarquia.

Mas queer solucionaria isso?

Algumas pessoas podem querer argumentar que reduzir tudo a queer pode ou vai apagar identidades pessoais. Mas isso já acontece com "LGBT", e de forma pior, já que ao menos queer não é nem uma sigla com outras identidades específicas que poderiam ser usadas se a pessoa faz parte dos grupos e nem uma lista restrita das identidades NHINCQ+ existentes.

Às vezes falam que meu conteúdo é LGBT, ou que sou uma pessoa LGBT. Isso não faz sentido pra mim; não sou lésbique, gay ou bi, e praticamente só digo que sou trans quando não vejo outra forma de alguém levar minha identidade não-binária a sério. Faria mais sentido até dizer que sou QIAPN+, porque sou queer, intersexo, assexual, arromântique, não-binárie e de outras identidades específicas não listadas. Só faltaria o P, mas ao menos nessa parte da sigla são 5/6 acertos, enquanto na outra é apenas 1/4.

Enfim, há sim a possibilidade real de pessoas quererem apagar tudo porque "cabe tudo em queer". Também já vi pessoas argumentando contra adicionar letras além de Q em LGBTQ porque "queer já cobre pessoas intersexo, assexuais, etc". Pois bem, cobre lésbicas e pessoas trans, gays e bi, por que são só certos grupos que são aceitáveis de "esconder"?

Mas queer também não oferece nenhum limite. Você pode só se dizer queer, mas também pode ser queer e oniassexual, arovague, poliagênero e perissexo, ou cis, heterossexual, arromântique e intersexo, ou mulher trans não-binárie lésbique intersexo, ou cis, perissexo e abrossexual, ou trans, intersexo e hétero, e por assim vai.

Queer não prioriza ninguém. Todas as narrativas queer são igualmente válidas, e não precisam ser medidas com valores como o quanto essa experiência é parecida com uma experiência gay cis alo ou trans binária hétero e alo.

Pode haver a necessidade de lutar para que queer continue sendo uma identidade livre e inclusiva. Não é impossível que acabem se formando certos estereótipos e hierarquias dentro de comunidades queer. Mas é mais fácil existirem pessoas com diferentes experiências em lugares que aceitam cada pessoa simplesmente por ser diferente da norma, do que em lugares que centralizam identidades específicas fora da norma.

Queer e sua abrangência

Como LGBTQIAPN+ e suas reduções são relativamente consagradas, é relativamente fácil convencer pessoas de que qualquer pessoa não-hétero, não-cis e/ou intersexo pode se dizer queer.

Mas, além disso, a coisa fica meio complicada.

Aqui estão algumas postagens sobre pessoas poliamorosas/poliamoristas e fetichistas serem queer: {x} {x} {x} {x} {x}

Francamente, a maior parte das brigas que acontece com isso são relacionadas com discriminação contra estes grupos e desconhecimento sobre como eles funcionam.

Acho difícil dizer que estes grupos não sofrem opressão quando pessoas podem perder trabalho/amizades por conta disso, quando a cultura dominante considera suas práticas estranhas, inapropriadas e pecadoras, e quando há pouco ou nenhum reconhecimento legal de seus relacionamentos.

Sim, cenas de fetiches são inapropriadas para menores de idade, mas há muito mais estigma em aceitar ou representar fetichistas (que existem fora de cenas de fetiches) do que em aceitar ou mostrar pessoas que consomem álcool ou dirigem. Muites roupas e acessórios que demonstram que alguém é fetichista não são mais sexuais do que diverses roupas e acessórios comuns. {x} {x} {x}

Sim, existem pessoas com traumas ou desgostos relacionados a fetiches, ou até mesmo a poliamor... mas por que essas possibilidades são consideradas mais importantes do que pessoas podendo falar de suas identidades e existir em espaços (o que, sim, é possível sem falar de sexo ou de cenas de fetiche, caso isso não seja apropriado para todes es presentes), quando o apagamento de outras identidades também consideradas queer seria apenas considerado preconceito e/ou intolerância?

Enfim, minha intenção aqui não é firmar que essas coisas são queer e ponto. A questão é que qualquer pessoa que desvia das normas de gênero, corporalidade e atração deveria poder se considerar queer, mesmo que isso não esteja dentro das caixas que geralmente usamos.

Outros exemplos que eu poderia trazer são de pessoas que quebram normas de gênero (como homens que se vestem com roupas consideradas femininas), ou que desejam ter corpos altersexo (fora dos padrões perissexo). Também são comunidades compostas por uma maioria que não é cis, hétero e/ou perissexo, mas são comportamentos/desejos que quebram as regras da sociedade eurocêntrica a ponto de serem vistos como queer.

Quando pessoas dizem "qualquer pessoa que quiser se dizer queer é queer", não é porque queer é um termo sem significado. É porque é mais importante dar um espaço para pessoas explorarem sues identidades e desejos e desafiarem todas as noções do que é "normal" e "ideal" em relação a atração/sexo/gênero/coisas relacionadas do que criar barreiras que sempre podem deixar gente de fora.

A comunidade queer valoriza mais a solidariedade e o quanto todes podemos fazer juntes do que a possibilidade de uma identidade uniforme e consistente. Até porque uma unidade uniforme e consistente é impossível! É só ver o quanto qualquer comunidade desenvolve suas terminologias mais específicas, mesmo que sejam apenas para serem usadas dentro de certos grupos.

Mas e os grupos opressores?

Ah sim, a retórica da invasão: se poliamor faz parte da comunidade, um homem cis/hétero/perissexo que quer tentar relacionamentos abertos vai poder entrar em espaços queer.

Primeiramente: se alguém causa problema, é aquela pessoa que precisa ser retirada do espaço. Não sua identidade.

Uma pessoa trans, intersexo e não-hétero que faz avanços inadequados em cima de outras pessoas é um problema maior do que a existência de pessoas com mais privilégio num espaço.

Até porque, algumas pessoas sempre vão ter mais privilégio do que outras. Se eu for num espaço "LGBT", mesmo descontando que pessoas multi e a-espectrais sofrem mais do que as que não são, qualquer pessoa não-hétero que for cis e perissexo já vai ter privilégio em relação a mim.

Enquanto isso, eu também vou ter privilégio sobre mulheres, pessoas racializadas, afetadas por transmisoginia, pobres, periféricas, gordas, que são profissionais do sexo, cegas, surdas, múltiplas, etc.

Em segundo lugar: pessoas hipernormativas não vão ter interesse em espaços inclusivos.

Assim como pessoas pericis heterodissidente muitas vezes detestam ter que levar pessoas trans e intersexo em consideração quando falam de linguagem, partes do corpo, atração ou pertencimento em comunidades queer, uma pessoa que é peri/cis/hétero teria que também desconstruir a questão de que sua orientação não é a única válida e nem superior a outras.

Existem diversas pessoas que tecnicamente poderiam fazer parte de comunidades LGBTQIAPN+, mas não se sentem seguras. Às vezes por uma ideia de que não são fora da norma o suficiente, outras vezes por intolerância a quem é "ativista" ou "mais radical", ou mesmo por intolerância à aceitação de identidades diferentes da sua.

Se alguém se sente interessade ou pertencente à comunidade queer, e se essa pessoa está disposta a ser inclusiva e a não ignorar seus privilégios, eu prefiro ela na comunidade do que pessoas com identidades "mais queer" que tentam excluir, regular e afugentar pessoas da comunidade à toa.

Em terceiro lugar: números maiores são melhores para organizar ações.

O termo queer é historicamente ligado com ativismo.

E para protestos, rodas de conversa, esforços de conscientização, administrar organizações e tudo mais? Ter mais gente inclusa é algo bom.

Isso não significa que qualquer pessoa precisa ser tolerada independentemente de suas ações nocivas porque precisamos de números. Também não significa dar o título de queer para qualquer pessoa para que se sinta parte da comunidade quando não quer.

Mas significa que criar barreiras e uma cultura de exclusão não é produtivo, quando podemos alcançar mais pessoas se a comunidade for mais livre e aberta.

Diversidade também ajuda a pensar mais nas experiências de outras pessoas, e não só aprender a discriminar menos, como também a incluir mais.

Apenas mais uma coisa sobre culturas de exclusão

Eu noto que algumas comunidades, por mais excluídas que sejam, às vezes engajam em chacota de comunidades menos aceitáveis que não conhecem, não entendem ou automaticamente associam com privilégio. Isso é um problema mesmo entre algumas pessoas que se dizem queer.

Ao se deparar com alguma comunidade diferente - seja de uma fandom, de uma identidade, de uma crença, de uma neurodivergência, de um fetiche, ou mesmo de alguma atração ou visão sobre gênero estranha - pense no seguinte:

  • Esta comunidade está fazendo mal a muita gente, de uma forma que não seja somente "as pessoas podem ver isso e achar que minha comunidade acredita nisso e isso é ruim" (política de respeitabilidade) ou "existem algumas pessoas abusivas nela" (o que pode se aplicar a qualquer lugar)?
  • Se ela está fazendo mal, será que é possível focar neste aspecto ao fazer chacota, ao invés de focar apenas na aparência/estética/estranheza da comunidade?
  • Se é difícil saber se está fazendo mal ou não, não pode ser interessante procurar mais sobre as experiências dessas pessoas, e entender motivos que as levam a fazer parte da comunidade?
  • Mesmo que haja desconforto pessoal em relação ao quanto a comunidade é estranha, vale a pena condenar a comunidade publicamente por isso?
  • É possível que boa parte da comunidade seja formada por pessoas marginalizadas? Se sim, não é possível que um ataque só adicione lenha na fogueira e faça com que pessoas de lá possam confiar menos em quem não é da comunidade?

Inclusão é algo que não pode se limitar a questões queer. Ficar brigando com pessoas ou fazendo chacota de comunidades por motivos supérfluos não ajuda ninguém, e prejudica uma possível solidariedade.