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Guia para o uso de i/il/i como linguagem neutra

Não acho que há a necessidade de entender isso antes de ler o guia, pois vou explicar como isso se aplica, mas quem quiser pode ler esta postagem antes desta para entender como funciona o sistema artigo/pronome/final de palavra.

Eu já disponibilizei no Orientando um guia de como usar e/elu/e como linguagem neutra. Acho que foi importante escolher este conjunto, já que é o que muita gente concorda que é o mais usado, e que se assemelha às linguagens padrão de forma que pode ser mais fácil aceitá-lo como linguagem neutra padrão, caso isso venha a acontecer.

Neste texto, venho propor i/il/i (i como artigo e flexão "de gênero" e il como pronome) como linguagem neutra. Não por considerá-la superior, mais intuitiva ou mais válida do que outras propostas, mas porque este conjunto também oferece vantagens em sua escolha, e poucos lugares ensinam a usar conjuntos diferentes de e/elu/e ou derivados.




O que é linguagem neutra?

Linguagem neutra é, resumidamente, a linguagem usada para se referir a grupos contendo elementos/indivíduos que usam mais de um conjunto de linguagem diferente, a indivíduos hipotéticos e a indivíduos de quem não temos informação sobre conjuntos de linguagem.

Por exemplo:

  • Um grupo tem 11 alunas e 5 alunos. O grupo tem 16 o quê? Alunas? Alunos?
  • Alguém está se inscrevendo para poder utilizar algum serviço. O texto deve indicar que tal alguém será um usuário ou uma usuária?
  • Uma pessoa na rua parece andar em círculos, não conseguindo achar onde quer ir. Ela está perdida, ou ele está perdido?

O padrão atual, na língua portuguesa, é usar o/ele/o (o conjunto de linguagem chamado de "gênero gramatical masculino" por ser associado a homens) para grupos mistos ou em situações onde se espera que hajam homens presentes. Em situações onde há pessoas que não falaram como querem ser chamadas, geralmente é feita uma leitura da aparência da pessoa que só reconhece dois gêneros (homem e mulher), e se usa o/ele/o se a pessoa "parecer homem" ou a/ela/a se a pessoa "parecer mulher".

Estes hábitos são derivados de uma cultura machista (que coloca homens como o gênero normal/padrão/superior/que mais importa) e cissexista (que atribui gêneros com base em certas partes do corpo e insiste que pessoas precisam ser daqueles gêneros a vida inteira). Portanto, pessoas que não querem compactuar com estes sistemas muitas vezes escolhem usar algum conjunto diferente de a/ela/a e de o/ele/o nas situações mencionadas.

Além disso, há uma necessidade de abrir espaço para conjuntos de linguagem diferentes dos associados com gêneros binários de qualquer forma, porque muitas pessoas não-binárias não se sentem confortáveis com ter que escolher entre essas duas. Mesmo assim, linguagem pessoal acaba sendo tendo mais possibilidades do que linguagem neutra, já que linguagem neutra tem o objetivo de incluir todas as pessoas, enquanto linguagem pessoal tem o objetivo de deixar cada pessoa poder escolher como quiser ser referida.

Este texto é sobre como usar uma forma específica de linguagem neutra, e ignora as possibilidades infinitas da linguagem pessoal. Caso seu interesse seja em entender mais sobre a linguagem pessoal de outras pessoas, recomendo este texto.

Enfim, linguagem neutra não pretende apagar a linguagem pessoal de ninguém, e nem mudar como pessoas se referem a objetos. Todos os exemplos aqui se referem a situações hipotéticas onde há conjuntos de linguagem mistos ou desconhecidos em questão.

Vantagens em usar i/il/i

  • Uniformidade na pronunciação dos elementos do conjunto (só conheço um som de i na língua portuguesa);
  • Elementos do conjunto não parecem parciais a o/ele/o ou a/ela/a, afinal não há questão de um som aberto ou fechado na vogal do pronome, e a letra i não é usada em nenhum desses outros conjuntos;
  • Poucas palavras terminam com i, então adjetivos como morti e laiqui ficam diferentes dos substantivos morte e laique;
  • I é uma letra mais fina, e portanto há uma diferença visual maior entre ela e e/a/o, o que pode ajudar a evitar equívocos;
  • I e il não são palavras existentes na língua portuguesa (fora a utilização de i como letra), então não há conflito entre o que significariam estas palavras em cada frase.

Desvantagens em usar i/il/i

  • "Estranheza", afinal o final e e pronomes mais parecidos com ela/ele são mais difundidos. Porém, é uma questão de costume, assim como literalmente qualquer elemento da neolinguagem, e assim como muita gente sentiu ou sente desconforto usando e/elu/e (ou x/elx/x, quando este era o conjunto mais usado como neutro);
  • Assim como ocorre em outros conjuntos que usam neolinguagem, algumas palavras vão parecer artificiais ou pouco intuitivas (esta questão será explicada a fundo em outra seção);
  • Il significa ele, na língua francesa. Porém, na língua espanhola, o pronome neutro que mais vejo sendo utilizado é elle, que é ela em francês e que parece com ele em português. Portanto, não vejo isso como algo que impeça a maioria de ver il como um pronome neutro;
  • O final i indica na língua italiana a mesma coisa que o final os indica na língua portuguesa. Novamente, não vejo isso como impedimento, já que o final e na mesma língua é equivalente ao final as na língua portuguesa.
  • O artigo i pode ter a pronúncia igual à conjunção e. Quem faz questão de resolver este problema pode querer usar o artigo li, ou um artigo completamente diferente do resto do conjunto, ao invés de i.

Ok, a proposta foi feita. Pronti para começar a entender este conjunto?




O artigo i

I e is seriam as substituições para a/o e as/os:

  • Os três artistas... → Is três artistas...
  • Quem era a/o estudante? → Quem era i estudante?

O pronome il

Il e ils seriam as substituições para ele/ela e elas/eles. A pronúncia desses pronomes é "iu" e "ius".

Eu sei que "ls" não é uma combinação encontrada na língua portuguesa com frequência, mas acho que usar ils como plural de il seria uma solução mais fácil, intuitiva e "neutra" do que usar eis, iles, is ou outra coisa que faça mais sentido em relação a como palavras com o final l geralmente são pluralizadas na língua portuguesa.

  • O que ele ou ela fez? → O que il fez?
  • Não faço ideia de quem sejam elas. → Não faço ideia de quem sejam ils.
  • Isso é dela. → Isso é dil.
  • Estive pensando neles. → Estive pensando nils.

O final de palavra (ou a flexão/terminação) i

Palavras que terminam com a(s) ou o(s) devem ter tais letras substituídas por i(s):

  • Aquela menina está pronta? → Aquil menini está pronti?
  • Estão atrasados. → Estão atrasadis.

Palavras que terminam com a(s) ou que não terminam com vogal na versão associada com a flexão o devem terminar com i(s):

  • Um moço veio aqui. → Umi moci veio aqui.
  • Isso é a escolha do/da pintor/a. → Isso é a escolha di pintori.

Palavras que terminam com co(s)/ca(s) ficam com final qui(s) por conta da sonoridade. A mesma coisa vale para os finais ga/go, que ficam com final gui:

  • São os amigos dela. → São is amiguis dela.
  • médicos suficientes pra isso? → Há médiquis suficientes para isso?

Palavras terminadas em io(s)/ia(s) ficam somente com o final i(s):

  • Você conhece alguém não-binário? → Você conhece alguém não-binári?
  • Quero entrevistar um(a) bibliotecário(a) → Quero entrevistar umi bibliotecári.

Palavras terminadas em ã(s)/ão(s) ficam terminadas em ani(s):

  • Você tem irmãos? → Você tem irmanis?
  • Seja um bom cidadão. → Seja umi boni cidadani.

Palavras terminadas em es/as ficam terminadas em is:

  • Apoiamos a greve dos professores! → Apoiamos a greve dis professoris!
  • Quero formar um clube de escultores. → Quero formar um clube de escultoris.

Pronomes demonstrativos

Eu sugiro os pronomes issi(s) e isti(s), pronunciados como isSI e isTI. Isso porque quero manter a similaridade com o pronome il e a mesma ideia de usar um som diferente ao invés de ter que decidir entre uma vogal e aberta ou fechada, mas também porque quero usar algo que pareça "mais natural" do que iss ou ist. A última sílaba é mais forte para diferenciar estas palavras de isso e isto, que são usadas para objetos.

  • Quem é essa cantora? → Quem é issi cantori?
  • Estes estudantes são os melhores da escola. → Istis estudantes são is melhores da escola.

Pronomes possessivos

Assim como no caso do final de palavra e, cada pessoa pode escolher se prefere usar minhi e sui ou mi e su.

  • Este é seu namorado? → Isti é sui namoradi? | Isti é su namoradi?
  • São meus primos. → São minhis primis. | São mis primis.

Sobre pronúncias e acentuação

Quem sabe sobre a gramática padrão já deve ter percebido que há uma diferença fundamental entre o final i e os finais e, o e a: o funcionamento da acentuação.

Palavras paroxítonas (que possuem a penúltima sílaba como mais forte) são acentuadas quando terminadas em i(s), como em JÚri e LÁpis. O mesmo não acontece em palavras terminadas em a(s), e(s) e o(s), como advoGAda(s), enFEIte(s) e buRAco(s).

Em relação a palavras oxítonas (que possuem a última sílaba como mais forte), a regra é aplicada ao contrário: palavras como daQUI e jabuTIS não levam acento, mas palavras como domiNÓ, jacaRÉS e soFÁ são acentuadas.

Uma preocupação comum com a utilização da flexão e para "neutralizar" palavras como trabalhadores/trabalhadoras e orientadores/orientadoras é que não existe solução óbvia: existem pessoas que defendem a utilização da terminação ies, e existem pessoas que defendem a utilização da terminação us.

Os problemas de -ies são os seguintes:

  • É possível notar a diferença entre a pronúncia de pintories e pintores?
  • O final ie(s) é algo que também leva acentuação em palavras paroxítonas (como em cáries, espécies e séries). Isso significa que palavras como professories deveriam estar grafadas como professóries ou professôries?
  • O quanto existem pessoas espalhando que -ies é o final correto nesse tipo de caso?

Os problemas de -us são os seguintes:

  • Como muitas pessoas pronunciam palavras terminadas em o(s) da mesma forma que pronunciam palavras terminadas em u(s), palavras como professorus e leitorus não remetem a usar linguagem associada a homens como neutra?
  • O final us também leva acentuação em palavras paroxítonas (como em bônus e vírus). Mesmo problema do final -ies.
  • E quando não estamos usando o pronome elu, apenas a flexão e? É justo aplicar a palavra pintorus a duas pessoas que usam o final de palavra e, mas que só devem ser referidas usando pronomes como el, ily, éli ou elz?

Minha proposta, com a utilização de -is, é transformar as palavras em questão em oxítonas. Ou seja, o equivalente a esculTOres/esculTOras seria escultoRIS. Isso resolve os seguintes problemas:

  • A pronúncia de tais palavras diverge do final es/ies, e portanto dá para perceber com mais facilidade a diferença entre, por exemplo, programadores (pro-gra-ma-DO-res) e programadoris (pro-gra-ma-do-RIS);
  • A escrita é intuitiva, porque é o mesmo final de palavra usado para qualquer outra palavra com flexão i (como médiqui, bibliotecári e ótimi);
  • Nenhuma acentuação é necessária, o que deixa as coisas mais práticas para quem não conhece normas gramaticais.

Porém, também admito que isso cria outro problema: a maioria não está acostumada a pronunciar palavras como orientadoRIS e trabalhadoRIS. Esta é uma questão que precisaria ser treinada. Além disso, para manter a coerência com tais palavras, palavras como atrasadi, menini e aluni também precisariam ser pronunciadas com a última sílaba mais forte.

Mesmo assim, não acho que é o fim do mundo se as pessoas que usarem isso ainda quiserem pronunciar certas palavras como namoRAdis ou aMIgui ao invés de namoraDIS e amiGUI, ou se preferirem escrever namorádis e amígui mesmo. A questão principal é diferenciar encanadoris de encanadores, escritoris de escritores e afins.

Sobre programas leitores de tela

Eu testei o Narrador do Windows neste texto, e o programa realmente não consegue reconhecer que uma palavra como leitori é oxítona, e não paroxítona. Mas isso é uma questão de programação, que precisa ser pensada para a neolinguagem em geral. De qualquer forma, se um texto está cheio de "menini", "todis" e "amiguis", não acho que seja o fim do mundo que programas não saibam reconhecer no momento a diferença entre pintoris e pintores, e é provável que quem esteja ouvindo consiga "ligar os pontos".




O conjunto i/il/i pode ser mais desafiador do que o conjunto e/elu/e em seu uso oral, e pode parecer "mais fora do padrão" na escrita. Mesmo assim, ele tem certas vantagens em relação a e/elu/e, e pode ser legal explorá-lo, assim como outros conjuntos, ao invés de reforçar apenas um como se todos os outros tivessem menos vantagens e desvantagens mais graves.

Ainda que este texto não convença ninguém a usar i/il/i como linguagem neutra, nem para experimentar por algum tempo, peço que reclamações não sejam feitas sobre como o conjunto em si é "estranho" ou "ridículo", ou sobre como "parece outra língua". Afinal, pessoas ainda podem querer usar este conjunto ou elementos dele como linguagem pessoal, e esse tipo de comentário pode machucar bastante aquils que se sentem representadis por este conjunto ou conjuntos parecidos.

Fora isso, eu gostaria de ter retorno de pessoas que usam i/il/i ou conjuntos parecidos: o que vocês acharam das sugestões que dei para casos "não óbvios" cobertos pelo conjunto? Vocês usam ou preferiam que outras soluções fossem encontradas?