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O apoio superficial às pessoas não-binárias

Aviso de conteúdo: Exorsexismo casual, apagamento de identidades/experiências não-binárias, aversão a ou mal uso de neolinguagem

Nota: Estou cansade demais para adicionar links. Se você não sabe o que é certo termo, use a função de pesquisa do navegador para procurar pelo termo aqui ou aqui.


Uma série de questões me incomoda faz tempo, e inclusive já falei dessas coisas em momentos e lugares separados. Mas acho que todas essas questões são conectadas a dois problemas específicos (que também se complementam), e por isto estou aqui fazendo este texto que conecta tudo.

Com o aumento da visibilidade de pessoas não-binárias nos últimos tempos, houve não só um aumento na quantidade de pessoas se identificando como não-binárias, como também nas pessoas que tentam incluir pessoas não-binárias em seus trabalhos, mesmo que de formas pequenas. Eu entendo que para um grupo tão abandonado como pessoas não-binárias, qualquer representação ou inclusão possa virar motivo para comemoração, mas há duas raízes principais que acredito que sejam a causa de muitos problemas:

  1. A exaltação da figura não-binária "justificável"

Existe uma exigência em vários graus de que exista um motivo para pessoas ou personagens serem não-bináries. Isso não é algo novo: desde gamers querendo justificativas para personagens principais serem mulheres ou negres até pessoas queermísicas procurando motivos para alguém real ser multi, lésbica, trans ou de outras identidades NHINCQ+, é um problema de pelo menos muitas décadas. Mas não significa que não possa ser apontado mesmo quando pessoas não-binárias ou supostes aliades fazem isso.

Muites personagens não-bináries são não-bináries por essencialmente "não terem sexo" ou "serem fusões de homem com mulher". Não me venham com "alô Steven Universe, hehehe", porque tem muitos outros lugares onde isso ocorre. Os poucos papeis não-binários de séries que precisam de atories reais geralmente são preenchidos por pessoas consideradas "fisicamente andróginas". Muitas matérias sobre pessoas não-binárias entram em detalhes sobre a corporalidade intersexo de tais pessoas, sendo que, ainda que pessoas não-binárias possam sentir que são não-binárias apenas por serem intersexo, focar nisso é um desserviço a pessoas binárias intersexo e a pessoas não-binárias perissexo.

Especialmente na ficção, parece que há uma tentativa de construir uma narrativa de "personagens não-bináries cis"; não há nenhuma pessoa trans binária na história, mas há personagens que são não-bináries por motivos que não seriam possíveis por pessoas não-binárias reais. Tais personagens também geralmente possuem suas identidades e seus conjuntos de linguagem respeitades por todo mundo.

Não é como se todas as mídias que retratassem pessoas não-binárias precisassem ter personagens não-bináries humanes, que não sejam fusões e/ou altersexo, e que sofressem discriminação; mas há uma ausência de mídia popular que possa ensinar pessoas binárias a tratarem/entenderem melhor pessoas não-binárias.

  1. O apoio a um trinário de gênero

A maioria das pessoas - e isso inclui muita gente não-binária - quer que pessoas não-binárias tenham os mesmos direitos básicos de pessoas binárias, mas não querem ter o "trabalho" de realmente reconhecer uma diversidade de vivências não-binárias.

São as pessoas que falam que rótulos como homem não-binárie e mulher não-binárie não fazem sentido, ainda que não se importem com explicações que digam que pessoas não-binárias "estejam em qualquer ponto no espectro de gênero entre homem e mulher". São as pessoas que só conseguem descrever pessoas não-binárias como "aquelas que não gostam de rótulos", ou como "sem gênero nenhum", ou como "entre homem e mulher". São as pessoas que apoiam a existência de um conjunto como le/elu/e ou ê/elu/e e que querem que vire oficial, mas que tiram sarro de ou criticam fortemente qualquer outra forma de neolinguagem.

(Também podem ser as pessoas que apoiam e se referem a pessoas não-binárias com a linguagem correta, mas que não ousariam usar -/elu/e ou similar para se referir a grupos que contém pessoas binárias, preferindo usar @/el@/@, x/elx/x ou "todes, todas e todos" ou outra coisa que seja mais aceita entre gente binária.)

São as pessoas que "acham problemático" se alguém se disser não-binárie por causa de trauma, neurodivergência, intersexualidade, raça, orientação ou outras experiências, porque querem que todas as pessoas não-binárias só se identifiquem assim porque "nasceram não-binárias". São as pessoas que falam que os rótulos que ajudam pessoas a localizar as próprias identidades de gênero de formas menos genéricas são nocivos para a comunidade. São as pessoas que se recusam a não categorizar pessoas que não são homens e nem mulheres de alguma forma que não seja não-binárie, mesmo que isso não faça sentido dentro da cultura de tais pessoas.

Isso tudo porque querem que não-binárie seja apenas mais uma categoria ao lado (ou no meio) de homem e de mulher, sem nenhuma sobreposição ou complicação ou diversificação. Querem aceitação não-binária, mas só num trinário de gênero restrito que também atrapalha muita gente não-binária.


Acho que já deu pra entender porque considero que estes problemas existem, mas quero elaborar mais sobre o motivo desses problemas serem problemas. Porque muita gente passa pano demais pra essas coisas, afinal, novamente, representação e inclusão não-binária é rara. E tudo bem considerar isso um progresso a um exorsexismo ou apagamento total, mas também não dá pra ignorar que ainda existem problemas aí.

Não-binaridade não é uma teoria ou hipótese; é a experiência vivida de muita gente. E há uma quantidade imensa de pessoas intolerantes ou ignorantes em relação à não-binaridade, o que causa inúmeros problemas pra nós.

Por isso, é importante ter mídia que normalize pessoas não-binárias com as mais diversas experiências: pessoas não-binárias racializadas, gordas, que usam o/ele/o, que usam a/ela/a, que usam -/-/-, que são perissexo, que são intersexo, que fazem transição corporal, que não fazem transição corporal, que foram designadas com gêneros diferentes ao nascimento, que usam diversos rótulos além de não-binárie, que usam neolinguagem em seus conjuntos, que usam mais de um conjunto, que decidem mudar de nome, que possuem nomes tipicamente "de homem" ou "de mulher", que inventam seu próprio nome ou usam um nome "estranho" para que não haja gênero associado com ele, que possuem as mais diversas expressões de gênero, e afins. E, por mais que outras possibilidades também sejam interessantes e possam ser boas representações, precisamos sim ter personagens não-bináries que sejam humanes e que sejam abertamente não-bináries na história. A ausência disso faz com que muitas pessoas nem tenham um ponto de partida quando alguém diz que é não-binárie, o que dificulta a comunicação e aceitação.

Também é importante espalhar que não-binaridade não é uma coisa só. Existem pessoas gênero-fluido, ambigênero, aporagênero, xenogênero, neurogênero, gênero-orientação, gênero-cinza, agênero, gênero neutro e afins, e isso tudo pode coexistir. Rótulos mais específicos fazem parte das identidades de várias pessoas não-binárias, e tentar censurá-los também é rejeitar partes das identidades de pessoas não-binárias, por mais que "de resto esteja tudo bem ser não-binárie".

Se existem pessoas sem gênero que usam a/ela/a e demimulheres que usam o/ele/o, também não faz sentido insistir em categorizar a/ela/a como conjunto feminino e o/ele/o como conjunto masculino. E, visto que um trinário de conjuntos de linguagem ignora as necessidades e expressões identitárias de muitas pessoas não-binárias, insistir que neolinguagem precise ser restrita a um conjunto só também machuca e invalida muita gente não-binária. Não somos de um gênero só, de uma expressão de gênero só ou de uma corporalidade ou corporalidade desejada só, então não há porque nos tratar como se só merecêssemos uma linguagem só (muito menos uma que também seria usada para pessoas de linguagem indefinida, como se não pudéssemos ter identidades próprias separadas da indefinição).

Orientações voltadas a pessoas não-binárias também precisam ser divulgadas. Muita gente parece ter a noção de que identidades não-binárias "não contam para atração", e de que pessoas atraídas por pessoas não-binárias sem serem atraídas pelos dois gêneros binários só podem usar identidades como gay, lésbica e hétero. Isso é apagamento, não importa o quanto você acha que a pessoa binária só pode se atrair por pessoas não-binárias que "pareçam tal gênero". Pessoas toren e trixen são multi, e também podem dizer que são bi e/ou poli se quiserem.

E muita gente acha que pessoas não-binárias são "sempre bi ou pan ou assexuais/arromânticas" porque "não conseguem diferenciar entre gêneros" ou "não ligam pra gênero". Isso novamente é um reducionismo da variedade de experiências não-binárias ao que pessoas binárias quer que nós sejamos; uma massa só que não gosta de rótulos ou que só é não-binária por não entender gênero (ou, em certos casos, por não sentir atração por ninguém). Existem pessoas não-binárias viramóricas, feminamóricas, cetero/medisso e/ou que preferem certo gênero a outros. Existem muitas pessoas não-binárias multi e/ou a-espectrais, inclusive pessoas que ligam isso com sua não-binaridade de alguma forma, mas, novamente, isso não vale pra todo mundo.

Como pessoa não-binária, vejo muita gente só usando alguma linguagem que não seja o/ele/o como neutra quando têm certeza ou certa suposição de que existem pessoas não-binárias na audiência, e eu não acho isso muito legal. Geralmente essas pessoas tropeçam bastante (como em "es pessoes" ou "todes os alunos"), e, além de passarem vexame, também demonstram que só ligam para fazer mudanças no vocabulário quando podem performar para uma audiência que aprecie isso, e não se esforçam para normalizar isso entre pessoas binárias. Também existe a presunção de que pessoas não-binárias só existem em espaços "LGBT", espaços ativistas e/ou alternativos com maioria jovem ou redes sociais, e não em outros ambientes.

Como administradore de espaços como Orientando.org e Colorid.es, também percebo a quantidade de gente que se interessa nestes projetos e que quer se socializar nestes lugares, até que percebe que neles há alguma exigência de respeitar conjuntos diferentes de a/ela/a e de o/ele/o, e de respeitar identidades diferentes de lésbica, gay, bi, trans, e talvez intersexo e/ou assexual. Porque daí é "coisa demais", é "estranho", é "desconfortável", é "anti-LGBTs de verdade", é "militância demais", porque aparentemente respeito à diversidade só conta se a pessoa já conhecia tal diversidade antes e não precisaria se preocupar em conhecer vivências novas.

Independentemente de você ser não-binárie ou não, pense se seu apoio à causa não-binária acaba ou freia quando você tem que botar conforto não-binário acima do conforto binário. Quando vivemos em uma sociedade exorsexista, falar de exorsexismo casual vai ser desconfortável para quem quer ser "livre de preconceito" e "à favor da diversidade" (e isso vale para diversas outras questões também).