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Um guia introdutório para comunidades NHINCQ+ inclusivas

Uma tentativa de minimizar o choque de cultura que as pessoas têm ao entrar em Colorid.es, no servidor de Discord do Orientando.org, etc.

(NHINCQ+ é uma alternativa mais inclusiva a LGBTQIAPN+)

Este guia não está sendo feito para dizer que você precisa agir de certa maneira para conseguir se dar bem em um espaço inclusivo, ou que comunidades precisam ser assim para serem inclusivas.

Este guia tem apenas o objetivo de ensinar sobre alguns conceitos muito conhecidos dentro de várias comunidades inclusivas que giram em torno de justiça social (isto é, comunidades antiopressão), e de ajudar pessoas a interagir com pessoas cujas identidades e comunidades podem ser mais “fora do comum” pra quem está de fora.

Este guia não tem como ser muito resumido, porque é justamente para pessoas que não sabem por onde começar quando deram seu primeiro passo para fora de comunidades que tentam ficar mais dentro de certas normas sociais.

Por favor, avisem se houver algum conceito que não dê para entender nem dentro do contexto, nem procurando aqui e nem fazendo uma rápida pesquisa na internet; tentarei assim colocar alguma explicação ou algum link que explique o conceito.


Informações básicas sobre o funcionamento de opressões

Aviso de conteúdo: menções vagas a opressões, suicídio e violência (vagas porque tentei deixar isto leve, mas ainda mostrar qual é o ponto de ligar pra isso). Se você acha que já sabe o suficiente sobre isso e isso vai te deixar mal, pode passar para a próxima seção.

(Uma nota sobre vocabulário: pessoas marginalizadas são pessoas que são negras, indígenas, mulheres, gordas, gays, trans, autistas, cegas, profissionais do sexo, pobres, etc. Eu não uso o termo minoria porque, embora saiba que minoria neste contexto signifique minoria de poder e não necessariamente de número, termos como grupos marginalizados ou pessoas minorizadas mostram melhor que tais grupos/comunidades/pessoas não estão naturalmente fora de posições de poder, e sim são mantidos fora delas.)

Racismo, misoginia, cissexismo, capacitismo, etc. não são problemas individuais, ou restritos a grupos que querem intencionalmente machucar pessoas marginalizadas. São frutos de sistemas hierárquicos que querem manter certos grupos como normais e/ou ideais, e outros como anormais e/ou inferiores. Com a colonização e a globalização, acredito que a maioria da população mundial tenha sido exposta a esse tipo de ideal.

Isto é, qualquer tipo de opressão vai estar enraizado em boa parte das pessoas que você conheceu, conhece ou vai conhecer. E muita coisa é perpetuada de forma velada; de forma que deixam parecer que não é realmente preconceito/discriminação/opressão, e sim alguma outra questão, como “senso comum” (que é sim pautado nessa lógica opressiva), sorte/azar, mérito ou qualquer outra coisa.

Perpetua-se a ideia de que ódio a grupos marginalizados é só questão de alguém que vai lá e comete alguma violência. Assim é fácil passar a culpa para pessoas específicas, ao invés de todo um sistema.

Alguém não é violentamente racista, misógine, cissexista, heterossexista, etc. do nada. A pessoa possivelmente cresceu com sua família expressando nojo por certo grupo marginalizado, com mídia (programas de rádio, TV, etc.) fazendo piadas em cima de tal grupo marginalizado, com suas amizades usando termos que se referem a aquele grupo marginalizado como algo ruim. Daí a pessoa consegue um trabalho com pessoas que pensam de forma parecida, algume de sues colegas lhe passa conteúdo que fala sobre como tal grupo marginalizado vai destruir seu estilo de vida, a pessoa consome mais mídia com discursos de ódio, e a pessoa decide eventualmente extravasar raiva agredindo alguém, porque não pensa naquela pessoa marginalizada como humana e sabe que ninguém em seus círculos lhe odiaria se soubesse.

É por isso que é necessário quebrar a ilusão de que tá tudo bem desde que fique só entre amizades; de que tá tudo bem porque é só uma piada; de que tá tudo bem porque é só ignorância; de que tá tudo bem porque precisamos respeitar a “diversidade de opiniões”; de que tá tudo bem porque é só conteúdo fictício (mesmo que tal conteúdo esteja sendo consumido em massa a um ponto que muita gente acha que aquilo é uma reflexão fiel da vida real). Todas essas coisas colaboram para que ataques continuem.

E quando não é alguém cometendo violência, são pessoas tendo que viver em volta de outras que fazem piadas sobre algo que é integral às suas identidades, que sexualizam sua existência de forma inapropriada, que menosprezam suas habilidades, que fazem cara de nojo, que gritam coisas na rua, que riem quando essas pessoas pedem respeito, que são maltratadas quando precisam de algum serviço que requer comunicação com outras pessoas, etc. Não é porque essa violência não é física que não importa. E não é à toa que qualquer pessoa marginalizada tem mais chance de desenvolver depressão, alcoolismo ou similares, ou de cometer suicídio.

Ou seja: opressão, no contexto desta postagem e da maioria dos espaços que usam a palavra, se refere a opressão estrutural. Tem uma postagem mais completa sobre isso aqui, mas já aviso que ela contém mais exemplos de exclusão social, automutilação, e outras consequências de opressões.

Para que servem espaços antiopressão

Pelo que está na seção acima, é importante ter espaços que vão contra essas opressões, aonde é possível:

  • Que pessoas marginalizadas tenham espaços que consigam não ter que lidar com esse tipo de coisa o tempo todo;
  • Que pessoas marginalizadas e suas aliadas possam se conhecer e formar redes de apoio;
  • Entender que certas coisas comuns no dia-a-dia contribuem com sistemas opressivos;
  • Aprender a evitar fazer ou apoiar ações envolvendo retórica, vocabulário e/ou violência opressive;
  • Organizar materiais e ações que ajudem outres pessoas e grupos a também parar de contribuir com opressão;
  • Compartilhar experiências relacionadas com opressão e assim desenvolver vocabulário, (re)construção de identidades e culturas fora da norma e estratégias para lidar com sistemas opressivos;
  • Organizar ações coletivas que consigam fazer um grande impacto na cultura e no sistema, almejando uma revolução que danifique ou destrua sistemas opressivos.

Obviamente, nem todo espaço vai conseguir fazer tudo isso; e nem é o objetivo de todo espaço fazer tudo isso, ainda mais quando são espaços pequenos.

Um grupo de amizades no WhatsApp pode tentar não perpetuar sistemas opressivos e ser uma rede de apoio para as pessoas marginalizadas do grupo, mas dificilmente vai partir para fazer ações de educação ou conseguir fazer uma revolução sozinho.

Uma rede social alternativa com pouca gente dificilmente vai criar um grupo coeso o suficiente para cunhar vocabulário que vai ser espalhado em outros lugares, e tem menos possibilidade ainda de construir uma cultura queer significativa ou acabar com o capitalismo.

Ambas essas comunidades podem ser pontos de partida para coisas maiores, e devem ser, se houver a oportunidade. Mas já aviso que muitas vezes isso não é viável, e que isso não significa que o grupo é totalmente inútil, superficial ou reformista.

Em geral, este guia estará tratando de comunidades que não têm mobilização suficiente para fazer ações maiores, porque tenho mais experiência com isso.

Lidando com intolerância

Aviso de conteúdo: menções a opressões, invalidação e assassinato.

Para resumir, pessoas que são abertamente machistas/racistas/cissexistas/heterossexistas/diadistas/capacitistas/etc. geralmente não são bem vindas em espaços antiopressão, a não ser que tais espaços não sejam realmente antiopressão.

Talvez, sim, estas pessoas possam algum dia aprender a não ser assim. Mas, se simplesmente deixarmos elas ficarem em nome da convivência ou da liberdade de expressão ou do aprendizado ou de qualquer outra desculpa do dia, pessoas marginalizadas (o público alvo, na falta de um termo melhor) não vão se sentir tão seguras e vão embora.

É estressante ter que lidar com quem invalida sua existência, e é perigoso ter que lidar com alguém que quer te matar.

Sugiro ler sobre o Paradoxo da Tolerância.

O que são microagressões e qual o motivo de você ter que ligar para elas

Aviso de conteúdo: microagressões de vários tipos ¯\(ツ)

Eu fui ver se alguém conseguia resumir o que são microagressões, e achei esta definição:

São palavras ou atos que têm um componente agressivo, mas que de uma forma ou de outra encobrem ou deformam o conteúdo violento que transmitem.

(Fonte)

Também achei esta aqui:

As microagressões são um tipo de maus-tratos psicológicos baseados no desprezo persistente e cotidiano, em uma anulação na qual o outro faz uso das brincadeiras para roubar, pouco a pouco, a nossa autoestima. Estamos diante de um tipo de maus-tratos do qual nem sempre se fala, já que não é tão evidente, não deixa marcas e, às vezes, nem quem o pratica nem quem o recebe são conscientes de que estão diante de uma prática muito destrutiva.

(Fonte)

Ambas as fontes falam de microagressões num contexto mais geral. Porém, em espaços de justiça social, geralmente se fala de microagressões quando estas estão vinculadas a algum tipo de discriminação.

Algumas microagressões que podem acontecer nesse contexto são:

  • Uma pessoa não conseguir explicar porque ela gosta menos de tal coisa, quando o motivo provavelmente tem a ver com o envolvimento de algum grupo marginalizado naquela coisa;
  • Uma pessoa não quer/não gostaria de ter envolvimento social, romântico e/ou sexual com pessoas de certo grupo marginalizado (como se todas tivessem certa característica indesejada);
  • Uma pessoa quer ter envolvimento social, romântico e/ou sexual apenas/preferencialmente com pessoas de certo grupo marginalizado da qual ela não faz parte (como se todas tivessem certas características desejáveis específicas);
  • Piadas “inofensivas” excessivas/indesejadas sobre uma identidade;
  • Piadas, retórica ou termos que igualam ser de um grupo marginalizado a ser algo ruim;
  • Utilização de coisas criadas por pessoas marginalizadas de forma que deturpa e apaga o sentido original delas;
  • Diminuição da importância de uma identidade;
  • Diminuição do impacto de uma opressão ou de coisas que ocorrem por conta de opressão (inclusive em relação a microagressões);
  • Comparação de opressões ou de coisas que ocorrem por conta de opressão para diminuir a discriminação que alguém ou algum grupo sofre ou sofreu.

Alguns exemplos disso são:

  • O presidente é um idiota. Idiota significa “sem inteligência”, e inteligência é uma construção social baseada no que uma cultura branca, neurotípica, patriarcal e mascunormativa valoriza. Usar uma palavra que significa “sem inteligência” como xingamento é dizer que pessoas fora dessa norma são piores de alguma forma;
  • Pessoas pansexuais gostam de panelas? Pessoas com atração por muitos gêneros já sofrem com estereótipos baseados em promiscuidade e em “transar com tudo e qualquer coisa”. Pessoas de qualquer identidade não-hétero já sofrem com ter que constantemente combater desinformação e presunções errôneas sobre o que suas identidades significam. Essa piada pouco original é só mais uma coisa na pilha;
  • Não sei se vou confiar num jogo feito por uma mulher… contribui com a ideia de que mulheres são piores para realizar trabalhos técnicos ou que não são relacionados a cuidar do lar e de crianças, uma ideia extremamente misógina.
  • Aposto que ele é misógino assim por ter pau pequeno. Isso é atribuir misoginia (novamente, um problema sistemático) a pessoas individuais, além de colocar a culpa disso em uma característica que qualquer pessoa pode ter independentemente do quanto for misógina, e de ressaltar o quanto uma característica comum a muitos homens trans e intersexo é digna de deboche, de nojo ou de mostrar o quanto essas pessoas são “menos homens” por isso. O gênero de uma pessoa não tem a ver com genitália ou com o quanto ela é diferenciada de outra genitália; estas são retóricas extremamente nocivas contra pessoas trans e intersexo.
  • Eu queria namorar um japonês, eles são tão organizados, podiam me ajudar… é uma frase que contribui para as noções de que todas as pessoas japonesas são organizadas (ou seja, gera vergonha em cima das pessoas japonesas que não são por não preencherem esse suposto requisito básico e vergonha em cima das pessoas japonesas que são por contribuírem para esse estereótipo), e para a noção de que são subservientes e prontas para ajudar quem não tem essa habilidade (o estereótipo de asiátique submisse é extremamente nocivo e parte de contextos colonialistas).

Mas são só coisas que todo mundo diz!” E é esse o ponto. Por serem microagressões, a primeira vista estas coisas parecem inofensivas; mas elas são constantes na vida de pessoas marginalizadas.

Mesmo “elogios” são ruins, quando reforçam estereótipos (ou porque você está dizendo que aquela pessoa é assim por ser de um grupo e não por seu próprio mérito, ou porque você está dizendo que aquela pessoa é diferente do grupo que em geral é inferior).

E mesmo que você não esteja atacando uma pessoa marginalizada diretamente, sua ação demonstra o quão pouco você considera suas questões válidas.

Uma boa dica para evitar “cair no lugar comum” e assim cometer microagressões é se expressar de forma mais literal, quando você não entende bem as conotações da forma figurada.

Ao invés de fazer uma piada usando o nome da identidade de alguém, você pode apenas perguntar o que a identidade significa. Ao invés de usar insultos vazios para ofender alguém, pense no que realmente a pessoa fez/a coisa é, e a descreva diretamente como inconsequente, imprudente, intolerante, nociva, prejudicial, ruim, desprezível, etc.

Obviamente, a questão não é só trocar palavras. A maioria das pessoas também precisa passar por um processo de reflexão sobre o quanto sistemas opressivos estão internalizados nela, e questionar o que foi empurrado como verdade por esses sistemas opressivos, quando prejudica grupos marginalizados e tem pouco fundo de verdade.

Estou falando de questões como categorização de atração sexual baseada em genitálias, categorização de personalidade/interesses baseada em raça/etnia/lugar onde nasceu, categorização de quais pessoas sabem do que estão falando ou não se baseando em se elas falam/escrevem “certo” ou possuem bom equipamento de áudio/vídeo, categorização de qual gênero a pessoa tem e de qual linguagem a pessoa usa baseada em sua aparência, etc.

Eu também recomendo que você evite falar de forma que, ainda que não seja ativamente relacionada com alguma discriminação, remeta a grupos que geralmente perpetuam discursos de ódio.

[Leituras recomendadas (aviso de conteúdo para um monte de discriminações): Get to Know the Memes of the Alt-Right and Never Miss a Dog-Whistle Again, The Far Right’s Most Common Memes Explained For Normal People]

Calling out, calling in, postagens educativas vagas

Quando alguém comete uma ou mais microagressões, existem algumas formas de lidar com a pessoa que não são banimento imediato da comunidade ou ignorar o que a pessoa fez.

Ao contrário da questão de pessoas obviamente intolerantes, lidar com quem comete microagressões é complicado, porque é até possível que a pessoa queira corrigir seu comportamento caso perceba que esteja machuchando alguém ou defendendo sistemas opressivos. Mas também é possível que a pessoa insista em fazer algo porque não entende como aquilo pode machucar ou afastar alguém.

Esta seção mostra algumas das formas que comunidades podem lidar com esse tipo de situação.

Callout/call-out/call out é um termo que muita gente que navega bastante pela internet deve ter ouvido falar.

Basicamente se referem a listas explícitas do que alguém fez de problemático, preferencialmente com provas.

Estou colocando call-outs na categoria de “ferramentas intracomunidade” porque raramente vejo call-outs para pessoas que estão completamente fora de uma comunidade (embora eles também existam).

Eu diria que são o resultado de quando uma comunidade não tem como depender de moderação para remover elementos problemáticos; assim, o único jeito de “tirar” alguém de uma comunidade é depender do resto das pessoas bloqueando a pessoa.

Embora não seja impossível de aprender com call-outs, eles são vistos como uma experiência estressante e extrema demais para ser um incentivo ao aprendizado. Em geral, são um último recurso, ou algo desnecessário porque o grupo tem moderação que pode remover a pessoa antes de chegar a esse ponto.

Call-outs também são infames por poderem isolar pessoas mesmo com provas falsas ou por coisas pequenas. Por isso, é recomendável que só sejam feitos por questões sérias, como abuso ou evidência de conexão recente com grupos reacionários. Mesmo assim, muita coisa pode ser resolvida diretamente com a moderação.

Ou seja: em comunidades como Colorid.es e como o fórum e o Discord do Orientando, call-outs provavelmente mais atrapalham do que ajudam, não são recomendados, e podem ser contra as regras em alguns casos.

Ao invés de call-outs, é recomendável fazer call-ins, que ao invés de serem públicos e com o objetivo de fazer todo mundo saber sobre o que a pessoa fez de errado, são privados e com o objetivo de só deixar a própria pessoa saber o que ela fez de problemático.

Caso exista uma moderação ativa e confiável, é possível contatar a moderação (ou reportar diretamente a postagem) para fazer isso. Também é possível tentar falar com uma amizade da pessoa, se você tiver essa intimidade com a amizade mas não com a pessoa.

O problema de call-ins é que eles não são visíveis, justamente para evitar que pessoas tenham que escolher lados ou fiquem falando sobre isso. Então, para a moderação, para as pessoas afetadas e por outras pessoas que tomaram nota, pode ser impossível de ver que a pessoa foi avisada e está disposta a não cometer aquele erro no futuro.

Mesmo assim, pode-se dizer que quando a equipe responsável pela comunidade avisa alguém que seu comportamento está fora das regras do site, isso também é um call-in, mesmo que as regras quebradas não tenham a ver com discriminação.

Se você acha que não vale a pena denunciar, e também não tem intimidade com a pessoa, você pode mandar alguma mensagem pública que eduque sobre a questão.

Eu recomendo tomar cuidado com isso, porque se a mensagem for direta demais, pode ser desnecessariamente hostil, de forma que talvez seria melhor ter falado com a pessoa mesmo. Eu recomendo postar o aviso em outro dia, de forma que não mencione nenhum ocorrido.

Uma mensagem educativa geral precisa ser explicativa: ou seja, precisa dizer que ação problemática está sendo feita, como e por qual motivo tal ação é nociva, e o que pode ser feito no lugar de fazer tal ação (se tal ação for alguma coisa que foi bem intencionada e que poderia ser melhor, e não alguma coisa que só discrimina/incomoda).

A vantagem de uma mensagem pública é que muito mais gente pode ver e aprender. A desvantagem é que você não tem como saber se quem deveria ler e absorver as informações vai fazer isso.

De qualquer forma, é recomendável você denunciar a pessoa ou contatar a moderação quando alguém está cometendo (micro)agressões, caso a moderação tenha o objetivo de manter um espaço inclusivo.

Consumo de conteúdo problemático (também vale para produtos em geral, mas vou focar em mídia)

Midia é um dos assuntos mais fáceis de se falar. Mas, como vivemos sob vários sistemas opressivos, grande parte da mídia reproduz/colabora com estas opressões.

Isso pode ser por meio da própria mídia (por exemplo, um filme com certo grupo marginalizado sendo estereotipado), e/ou pelo meio da produção (por exemplo, pessoas que fizeram o filme já fizeram comentários discriminando contra grupos marginalizados).

As reações a pessoas que falam sobre como gostam desse tipo de conteúdo variam de comunidade para comunidade. Algumas comunidades não vão se importar desde que ninguém fique negando o quanto aquela mídia/quem a fez é nocive para certos grupos, outras nem deixam que pessoas que gostam de certas mídias entrem na comunidade.

Pessoalmente, acho que não há como todos os gostos de alguém serem completamente livres de perpetuar opressão ou de ter qualquer outro problema, mas também não vejo porque alguém comprometeria seu lugar numa comunidade só porque precisa expressar que gosta muito de consumir alguma coisa.

A ideia de que alguém vai ser taxade de {rótulo que expressa que a pessoa contribui ativamente com opressão} só por gostar de {mídia que contribui ativamente ou passivamente com tal opressão} é meio exagerada, mas sugiro prosseguir com cautela.

Aprendendo sobre opressões e discriminação

Infelizmente, eu não consigo resumir tudo o que aprendi por anos em uma lista de links para ler em um dia.

Além disso, linguagem e retórica vão evoluindo com o tempo, e podem diferir de comunidade para comunidade.

Considere acompanhar contas/páginas que falem sobre isso em seus métodos preferidos (RSS, redes sociais, barra de favoritos, etc.), mas evitando acompanhar somente as que são:

  • Apenas/majoritariamente memes e postagens de poucas linhas (sim, isso pode ser legal para chamar a atenção de quem não sabe de nada, mas aprender sobre discussões mais profundas e com mais nuance também é importante);
  • Apenas/majoritariamente chacota de retórica opressiva (novamente, isso pode ser legal, mas tem muita coisa importante que acaba não sendo discutida com esse formato);
  • Curadas por aliades (não que elas não possam ser boas, mas tente centralizar vozes marginalizadas);
  • Focadas em combater uma única opressão a ponto de ignorar que outras existem;
  • Favoráveis a chacota de grupos que não são pró-opressão ou privilegiados só porque “são estranhos” e não são marginalizados por si só (isso significa que é só uma questão de tempo até acharem alvos marginalizados “aceitáveis”);
  • Apegadas a termos/argumentos que contribuem para sistemas opressivos (mesmo que o conteúdo seja bom para uma opressão específica).

Existem vários espaços que te permitem fazer perguntas, como Ajuda NHINCQ+ (especificamente sobre questões NHINCQ+) e Writing with color (especificamente sobre como escrever personagens racializades). Sugiro procurar por um espaço assim para fazer perguntas, caso você não tenha conseguido achar o que quer com pesquisas; não é muito legal você mandar esse tipo de pergunta pra pessoas marginalizadas aleatórias.

Evite depender de outras pessoas te avisando sobre algo ser microagressão ou retórica intolerante. Tente se informar de questões além das que colocam na sua frente, e se questionar sobre se certas atitudes suas realmente são inofensivas.

“Errei, e agora?”

Talvez você tenha falado algo que não sabia que era uma microagressão, ou tenha feito uma piada que para muita gente remete a um apito de cachorro reacionário. Talvez outra pessoa tenha percebido isso e tentado falar com você sobre isso. Aqui estão algumas dicas para lidar com isso:

  • Se você concorda que o que fez é errado, não tente se justificar. Peça desculpas (sem exagerar) e pesquise mais sobre o assunto para não cometer o mesmo erro novamente;
  • Se você não concorda que o que fez é errado, pense no motivo pelo qual você não acha que aquilo é errado antes de argumentar. Outras pessoas afetadas não terem falado com você sobre isso antes ou a sociedade em geral achar que o que você fez é aceitável não são bons motivos;
  • Não faça com que a outra pessoa tenha que se dar o trabalho de pesquisar para você o motivo daquilo ser errado. Faça sua própria pesquisa antes de perguntar;
  • Evite trazer pessoas que não fazem parte da situação para a discussão (e, se quiser fazer isso, confira com essas pessoas em uma situação privada primeiro se aceitam fazer parte dela).

Sobre identidades que você nunca viu

Agora começa a parte que se aplica especificamente a espaços NHINCQ+ inclusivos.

Nestes espaços, é comum você ver pessoas demonstrando que são de identidades que você achava que ninguém usava de verdade, ou das quais você nunca ouviu falar.

O mundo heterodissidente (de pessoas cuja orientação não pode ser precisamente descrita apenas como hétero) vai além de L/G/B.

E comunidades inclusivas vão conter pessoas que se sentem seguras para dizer que sua atração é fluida (por meio de rótulos como arofluxo, abrossexual ou outros), por mais de um gênero (por meio de rótulos como toren, polissexual, pan ou outros), condicional (por meio de rótulos como demi, lith, fray ou outros), inexistente (por meio de rótulos como omniarromântique, assexual estrite, claperromântique ou outros), fraca/vaga/ocasional (por meio de rótulos como gray-a, acevague, caligo ou outros), por pelo menos certo gênero (por meio de rótulos como dórique, trízique, aquileano, sáfica ou outros), e por assim vai.

O mundo cisdissidente vai além de pessoas trans binárias (ou seja, pessoas que se identificam somente como homens trans/transexuais/transgênero ou como mulheres trans/transexuais/transgênero) e de pessoas que só se definem como não-binárias.

Existem pessoas que não são contempladas pela cisnormatividade mesmo que se identifiquem totalmente com seu gênero designado (como pessoas utrinquegênero e ipsogênero), existem pessoas que não se dizem não-binárias mesmo que se encaixem na definição, entre outras. (Se você está falando de pessoas cisdissidentes ou não-cis num geral, estas pessoas precisam ser inclusas também.)

Também existem muitas pessoas que preferem usar rótulos mais específicos do que não-binárie. Por exemplo, uma pessoa gênero-vácuo é totalmente sem gênero e/ou tem vácuo no lugar do gênero; alguém que é nonvir tem uma identidade de gênero fortemente ligada com masculinidade mas completamente afastada do gênero homem; alguém que é gênero-fae muda de gênero de tempos em tempos mas sua identidade de gênero nunca muda para gêneros que são masculinos.

Cada rótulo possui suas particularidades, e tais particularidades podem afastar ou atrair pessoas para certos rótulos, mesmo que mais de um rótulo possa ser utilizado para a mesma situação.

Boa parte das pessoas que usa rótulos menos conhecidos também usa rótulos mais conhecidos em outras ocasiões. Mas isso não é algo que pessoas devem ser forçadas a fazer.

Existe uma postagem aqui que fala mais sobre os motivos de pessoas preferirem certos termos a outros.

Em questão de pessoas intersexo… bem, é raro que pessoas não-perissexo se identifiquem com outra coisa, mesmo que algumas pessoas não gostem da conotação errônea de “entre os sexos” que intersexo dá. (Pessoas com cromossomos XXX ou XYY não estão “entre” os dois sexos aceitos pela sociedade eurocêntrica cristã, mas ainda são intersexo, por exemplo.)

De qualquer forma, o que você precisa ter em mente em relação a interagir com pessoas com identidades diferentes da sua é isso:

  • Não é legal afirmar que certa identidade é inútil apenas porque existem outras parecidas (mesmo se houver uma exatamente igual, nomes alternativos não são necessariamente inúteis);
  • Antes de sair falando que uma identidade é problemática, tente falar com outras pessoas sobre isso e ver muitas perspectivas sobre a questão, para ter certeza de que você não está apenas contribuindo com discriminação;
  • Não sugira identidades “mais adequadas” para pessoas que não as requisitaram;
  • Evite fazer perguntas como “por que você usa {rótulo 1} ao invés de {rótulo 2}?” Caso você realmente tenha esta dúvida, coloque ela de forma geral (“por que alguém usaria […]”) em um lugar que mais de uma pessoa possa responder, e coloque um aviso de conteúdo de possível invalidação para que isso não seja jogado na cara de pessoas frágeis cansadas desse tipo de pergunta;
  • Evite fazer perguntas como “mas por que você se identifica como {rótulo}?” A não ser que alguém tenha dito explicitamente que não se importaria em responder, essa é uma questão que pode ser extremamente pessoal e complexa demais para responder a uma pessoa aleatória;
  • Evite fazer perguntas sobre nomes de registro, genitália, funções corporais, transição hormonal ou outras questões pessoais, por mais que você tenha curiosidade de saber;
  • Evite fazer piadas sobre ter uma identidade específica demais (ex.: “nossa eu devo ser celebsexual eu só tenho tesão por celebridades”), especialmente se você não usa identidades tão específicas quanto as da piada;
  • Não presuma que pessoas não passaram por certos tipos de discriminação por terem identidades diferentes da sua. Pesquise e procure conhecer outras experiências;
  • Não tente resumir ou reduzir a importância de certas identidades (ex: “pra mim, qualquer homem que gosta de homens é gay”);
  • Tente usar linguagem inclusiva quando sua postagem se aplica a vários grupos (ex: se você está falando sobre qualquer pessoa que sente atração por vários gêneros, use multi ao invés de bi). Vários termos pouco conhecidos podem te ajudar nisso, então sugiro que você pergunte sobre isso!

Ah é, se você usa LGBT ou LGBTs, eu sugiro mudar isso. Talvez você esteja acostumade com essas siglas serem o auge da inclusão, mas estas siglas foram e são usadas para excluir propositalmente pessoas intersexo, assexuais, arromânticas ou mesmo de outras identidades que “tecnicamente poderiam ser da sigla original”, mas que “se fossem mesmo da comunidade mesmo só diriam que são bi ou trans ou lésbicas ou gays e pronto”.

Isso não significa que você tem que usar NHINCQ+, queer ou algo igualmente abrangente e pouco aceito. Você também pode usar LGBT+, LGBTQ+, LGBTI+, LGBTQA+, LGBTQI+, LGBTQIA+, LGBTQIAP+, LGBTQIAPN+, QUILTBAG+, comunidade arco-íris ou outras variações disso.

Não existe lista completa de todas as identidades NHINCQ+, mas se você está procurando pelo que significa algo específico, pode tentar achar a resposta aqui, aqui, aqui, aqui, aqui ou aqui.

Você não precisa saber de todos os termos existentes ou usados, mas sugiro que tente manter a mente aberta e evitar excluir pessoas injustamente.

Sobre linguagem pessoal e neutra

Para os propósitos deste texto, vou definir linguagem pessoal como conjuntos de linguagem que pessoas usam para si, e linguagem neutra como conjuntos de linguagem usados para grupos com linguagem pessoal mista ou para pessoas cuja linguagem pessoal não foi determinada.

Por exemplo, a linguagem certa para se referir a uma pessoa chamada Maria é o artigo a, o pronome ela e o final de palavra a (a/ela/a). Então podemos dizer que a/ela/a é a linguagem pessoal da Maria.

Daí suponhamos que exista outra pessoa, que se chama Leandro, e que usa o/ele/o. Esta é a linguagem pessoal de Leandro. Maria deve se referir a Leandro usando o/ele/o, mesmo que a linguagem pessoal dela seja a/ela/a.

Agora, digamos que alguém queira se referir à Maria e ao Leandro ao mesmo tempo. Você pode usar “eles”, mas isso significa dar prioridade à linguagem de Leandro, e isso tem base na ideia de que o/ele/o é uma linguagem mais importante por ser mais usada por homens. Você pode usar “elas”, mas isso significa dar prioridade à linguagem de Maria; e como usar a/ela/a como linguagem neutra não é algo comum, é possível que te interpretem como alguém que não quer reconhecer que Leandro usa o/ele/o.

Na maioria dos lugares, ninguém vai estranhar se você se referir a estas duas pessoas como “eles”. E não é proibido fazer isso em espaços inclusivos.

Porém, pense na seguinte questão: um grupo de 5 pessoas está fazendo panfletos sobre a identidade trans. Três são mulheres trans, e usam a/ela/a. Uma é um homem trans, que usa o/ele/o. Uma é uma pessoa não-binária transfeminina, que usa -/ila/e.

Se referir ao grupo como “eles” está centralizando a identidade de um homem acima da identidade de quatro não-homens, que, inclusive podem ter uma grande repulsa a serem tratades por uma linguagem vista pela sociedade como a associada ao seu gênero designado. Se referir ao grupo como “elas” pode fazer as duas pessoas que não usam a/ela/a se sentirem mal, porque homens trans já são acostumados com pessoas usando a/ela/a por invalidação, e pessoas que usam neolinguagem (o que inclui qualquer pronome diferente de ele e de ela e qualquer final de palavra ou artigo diferente de a e de o) também já estão acostumadas com serem invalidadas pelo meio de usar uma das linguagens padrão.

Ou, alternativamente, pense na seguinte questão: você quer se referir a um casal aonde uma das pessoas usa a/ila/a e a outra usa ze/elz/e. Usar tanto “eles” quanto “elas” já carrega uma grande associação com maldenominação.

Portanto, é preferível e recomendável que você use (ou ao menos treine usar) alguma linguagem que não remeta nem a o/ele/o e nem a a/ela/a. Os conjuntos e/elu/e e ê/elu/e são populares como neutros, mas também existem pessoas que propõem e/ile/e, le/elu/e ou i/ili/i.

Caso os exemplos não tenham sido suficientes para entender esta questão, aqui tem um resumo sobre o que são conjuntos de linguagem, e aqui tem uma página mais completa sobre neolinguagem e conceitos relacionados.

Mesmo que, no fim, você não queira usar algum conjunto que use neolinguagem como linguagem neutra, é extremamente importante que você ao menos aprenda a respeitar os conjuntos de linguagem pessoal alheios.

Enfim, minhas recomendações são as seguintes:

  • Não presuma gênero ou linguagem com base em aparência ou atitude. Confira a linguagem pessoal no perfil da pessoa antes de se referir a tal pessoa com qualquer termo que remeta a alguma linguagem específica;
  • Caso não haja informação sobre a linguagem de alguém em lugar nenhum, e não faça sentido perguntar, pode ser uma boa ideia usar linguagem neutra, desde que você não esteja usando a/ela/a, @/el@/@, o/ele/o ou similar como linguagem neutra;
  • Caso você não saiba como usar certo conjunto de linguagem, você pode tentar usar este gerador, que dá uns exemplos. Se precisar saber algo mais específico, você pode perguntar, ou chutar e indicar que não tem certeza de como é a forma certa;
  • Assim como em relação a identidades em si, não faça piadas ou presuma que sabe o quanto a vida de alguém é fácil pelo conjunto de linguagem pessoal que a pessoa escolheu.

Você também não deve presumir que a sua linguagem pessoal é óbvia para outras pessoas. Recomendo colocar sua linguagem no perfil. E caso alguém pergunte sobre sua linguagem, por favor responda adequadamente, ao invés de dar respostas indiretas que dependem de presunções cissexistas, exorsexistas, ou conformistas de gênero ou de linguagem para funcionar.

(Exemplos de respostas cissexistas, exorsexistas e/ou conformistas de gênero/linguagem para a pergunta “que conjunto de linguagem você usa” são: “olha minha foto e vê o que você acha”, “eu sou mulher”, “uso linguagem masculina”, “uso pronome ele”, “elu/delu” e “eu tenho um pau né”. Todos estes exemplos dependem de presunções que excluem pessoas fora de certas normas.)


Espero que este guia tenha sido informativo!

Caso você tenha alguma dúvida, é só deixar um comentário!