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Uma exploração do meu próprio gênero

Texto originalmente postado no Padrim em 09/11/2019.

Não estou a fim de fazer uma explicação certinha e universal sobre como se “sente” um gênero. Também não sei se seria capaz de fazer isso. Mas presumo que todas as pessoas que estejam lendo este texto entendam que, embora gênero não seja exatamente um sentimento (ao menos para boa parte das pessoas), ainda é algo que é “sentido” de alguma forma, e portanto usarei esta terminologia aqui. Não significa que meu gênero é temporário ou menos real porque ele é sentido ao invés de qualquer outra coisa.

Eu diria que “sentir gênero” é um sentido separado de outros. Visão, audição, tato, etc. são sentidos diferentes, e, enquanto algumas pessoas conseguem sinestesicamente ouvir cores ou ver cheiros, boa parte das pessoas experiencia cada sentido de forma separada. Também é possível comparar uma imagem ou uma comida com alguma música ou algum som sem estar literalmente ouvindo algo ao ver ou degustar algo, por exemplo. As comparações visuais com gênero feitas aqui devem ser vistas desta forma.


Notas (30/06/2024):

1. Alguns relatos de experiências de gênero podem ser vistos/ouvidos neste vídeo.

2. Em geral, atualmente eu falo de gêneros como sensações, ao invés de sentidos. Pra mim, gênero não é algo que pode ser presenciado de forma concreta, mas que pode ser percebido como presente. Assim como não é fácil descrever a sensação de ter esquecido algo ou a sensação de ter comido algo ruim em termos concretos, especialmente para pessoas que dizem não saber como são tais sensações, gênero pra mim é algo que pode ser conceitualizado sem ter consequências diretamente ligadas a como eu quero me vestir ou que corpo quero ter.

3. Neste ponto, não só já me disse xenogênero por vários anos, como também escrevi este artigo, que pode ajudar a entender melhor experiências xenogênero de forma geral.


Para começar, eu não consigo ver mulher ou homem como categorias que se aplicam a mim. Não só por conta de papéis sociais ou criação, mas também por conta de eu nunca ter me sentido inteiramente aceite em cada um destes grupos, de forma que me colocarem como parte deles simplesmente não faz sentido para mim.

Eu tenho noção de que outras pessoas que são neurodivergentes, ou até mesmo pessoas que são marginalizadas em outros aspectos, podem sentir como se não pertencessem a estes grupos, mas ainda afirmarem que são mulheres/homens. Eu não acho que isso é errado, apenas estou falando da minha própria experiência. Para mim, simplesmente não faz sentido me chamarem de mulher ou de homem quando estes grupos me rejeitam e julgam pelo quanto eu sou diferente deles, apenas apelando para o quanto eu sou similar quando passo a afirmar que não faço parte do grupo que estão querendo que eu me encaixe.

Ao mesmo tempo, também me parece bem errada a noção de que não tenho gênero. Esta é a parte que começa a ser difícil de explicar, porque se na sociedade onde cresci só existem os arquétipos formados ao redor do que é mulher e ao redor do que é homem, como é possível se afirmar como outra coisa que não é relacionada com estes gêneros?

Coisas que sinto que são presentes em mim - talvez sejam coisas que tenham sido sugeridas pela sociedade de uma forma ou de outra, mas elas fazem parte de mim - são elementos de masculinidade e feminilidade. Eu sinto estas características presentes muitas das vezes em que eu falo, me visto, penso nos meus gostos, etc. Eu sei que masculinidade e feminilidade são características fortemente moldadas por uma sociedade branca e cristã, e que são uma série de estereótipos aos quais não preciso me apegar. Mas a questão é que elas me descrevem, e então faz muito mais sentido para mim me dizer inavire do que ignorá-las completamente.

Novamente, eu não consigo me ver como parte homem ou parte mulher, então não faz sentido para mim dizer que estou no meio disso, mas algumas ideias relacionadas a estes arquétipos me representam, e por isso vejo inavire como um rótulo que me define. Gosto de ter algo específico para me identificar, e inavire é provavelmente o rótulo mais fácil de entender que ainda se aplica ao meu gênero.

Porque, é, tem outro.

Tenho um gênero e ele tem características que podem ser associadas com feminilidade e masculinidade. Ok. Mas será que dá pra pensar no que é este gênero em si? Refleti bastante sobre isso. Acredito que possam haver inavires que só vejam o seu gênero como esse arquétipo fora do binário que é ligado com feminilidade e com masculinidade, mas também acredito que inavire (assim como nonvir e nonera) possa ser descrição de algum outro gênero que também é fora do binário e tem masculinidade e feminilidade.

Conheço alguém que é menino NB e nonpuella (versão “criança” de nonera), por ser homem com tal gênero contendo feminilidade, sem nada de masculinidade e nem de relação com ser mulher. Após certo tempo, esta mesma pessoa passou a se identificar como melle, um termo que cunhou. Da mesma forma, acredito que pessoas possam ser nonvires, noneras e inavires aplicando estes rótulos a identidades como agênero, gênero neutro, maverique, etc. E, depois de refletir bastante, cheguei à conclusão de que meu gênero também era alguma coisa específica que poderia ser descrita como inavire, e não era “puramente” inavire.

Então o que seria? Eu não me vejo como alguém sem gênero. Neutralidade parecia ser um conceito aplicável ao meu gênero de alguma forma, mas eu também não sentia que meu gênero era neutro. Um gênero neutro me remete a uma ideia de ser uma opção neutra em relação a todos os outros gêneros, ou ao menos em relação a alguns deles. Um gênero neutro me remete ou a uma conexão forte com neutralidade ou a uma certa passividade em relação ao gênero. Eu entendo que nem todas as pessoas gênero neutro podem se sentir destas formas, mas eu não consigo ver meu gênero como simplesmente neutro.

Ao invés disso, meu gênero é algo forte, que me dá grande desconforto quando me veem como uma pessoa binária. É algo que me influencia a usar linguagem que não é apenas neutra, mas que apenas alguém não-binárie iria usar. É algo que faz com que tentar ao máximo ser viste como não-binárie seja uma prioridade mais importante do que não chamar atenção, por mais que isso traga sofrimento.

É por isso que sinto meu gênero como se fosse uma luz, porque embora eu sinta que ele seja algo “simples” e “monocromático”, ele chama a minha atenção e parece mais algo à parte de outros gêneros do que algo que tenta ser um campo neutro entre eles. É por isso que sou lichtgênero; ou seja, vejo meu gênero como uma bola de luz.

Eu entendo que muitas pessoas podem se perguntar se não seria melhor eu me identificar como, sei lá, maverique, aporagênero, aliagênero, altegênero ou outros rótulos. Mas sinceramente acho que lichtgênero descreve melhor como me sinto. Também não me vejo como caelgênero, gênero-estrela, saturniane ou astergênero porque não vejo meu gênero como algo alienígena, celestial ou relacionado ao espaço, apenas como algo que surgiu/cresceu e existe dentro de mim. (Mas vou admitir que não seria impossível eu ter me identificado como saturniane ou astergênero se as circunstâncias fossem diferentes, já que são termos relativamente próximos do meu gênero.)

Enfim, espero que isso tenha ajudado um pouco a entender meu gênero, ou a entender pessoas xenogênero, ou a pensar mais sobre sua própria identidade de gênero. Eu tenho um pouco de receio de postar isso em público, mas como é um tipo de experiência com o qual poucas pessoas têm contato, qualquer informação sobre sua existência pode ser útil.